Fellet com Fritas: “Herança”

29 out | 1 minuto de leitura

Leia o primeiro texto da coluna quinzenal de crônicas de Ombrelo

Conta-se que, nas quitandas de antigamente, havia um gato para exterminar os ratos que eram atraídos pelos mantimentos. Nossa subsistência, por muito tempo, foi refém dessa cadeia alimentar se consumando na frente da gente, sem um pingo de cerimônia. Graças a conservantes, a sobrevivência hoje chega a nossa casa enlatada, ensacada, engarrafada e, principalmente, blindada contra pragas e intempéries.

Faz duas décadas mais ou menos que, a caminho do colégio, eu via moradoras de uma comunidade lavando suas roupas na mina localizada em pleno passeio público. As mulheres se amontoavam ali em romaria e fretavam trouxas na cabeça. Durante a lavação, cantavam música de igreja e compartilhavam seus testemunhos de luta. Era um culto de súplica. E os passantes também se energizavam com a frequência vibracional formada naquele lugar.

Com o correr do tempo, lavar roupas tornou-se um ato sintético. As peças sujas passaram a ficar dentro da máquina, no aguardo da convocação por hierarquia – cortinas, tapetes, mantas ou uniformes, jeans, lingerie. Dali, elas saem semiprontas para retomar a serventia de antes: vestir o major, forrar a cama do enfermo, agasalhar o velhinho.

Se antes, para comprar o que fosse, era necessário se deslocar até uma loja e esperar do vendedor um argumento convincente, atualmente enchemos nosso carrinho virtual de perecíveis e outros bens cuja expectativa de vida ultrapassa a dos tubarões da Groelândia, que chegam a 400 anos.

No meio de tantas transformações, há mais uma já anunciada: a quarta revolução industrial. A previsão é de que ela automatize totalmente os processos fabris. E isso se dará através de sistemas ciberfísicos, que combinam máquinas com recursos digitais. Se os robôs vão mesmo dispensar nossa mão de obra em tantas áreas, a esperança é de que nos sobre tempo para exercermos mais a humanidade e refletirmos sobre nossa função ecológica e sagrada no planeta.